Mais do que alunos prontos para gabaritar provas e destacar-se em
rankings, que cidadãos queremos formar? Os tempos mudaram, a
neurociência aponta os caminhos da aprendizagem e o ensino precisa ser
repensado para fazer o mundo melhor.
Na educação do século 21, os alunos se tornam protagonistas do seu
aprendizado e precisam ser ouvidos, podendo e devendo ser cocriadores
das soluções (Foto: iStock)
Para educar as crianças de qualquer geração, é preciso mirar o mundo
em que elas viverão quando forem jovens e adultos produtivos. Diante das
intensas e profundas transformações vividas nas últimas décadas,
entretanto, fica bem difícil imaginar qual será a realidade de 2040 ou
2050. Para se ter uma medida das mudanças, cerca de 85% das profissões
de 2030 ainda nem foram inventadas, segundo estudo do Instituto para o
Futuro (IFTF). Apenas uma coisa fica clara: a realidade presente e do
futuro, mesmo próximo, já não tem nada a ver com a do século passado.
Apesar dessa certeza incontestável, as escolas ainda continuam seguindo a
mesma lógica de ensino e passando os mesmos conteúdos de, pelo menos,
50 anos atrás.
“A educação básica é feita para preparar as pessoas para a vida e,
atualmente, ela prepara para uma vida que não existe mais. É como querer
instalar um aplicativo moderno num celular velhinho; ele trava. O
sistema educacional hoje está travado”, resume Anna Penido, diretora do
Instituto Inspirare, dedicado a contribuir para que a educação faça mais
sentido aos estudantes. Ela ressalta que a única coisa do século 21 que
tem na escola, hoje, são os próprios alunos. E que, além de pensar no
mercado de trabalho, é preciso preparar as pessoinhas em formação para
construir um mundo melhor. “Precisamos instrumentalizá-los para que
sejam capazes de fazer transformações positivas no seu entorno.”
Nesse ambiente tão incerto da atualidade, o desenvolvimento do
intelecto e o acúmulo de conhecimento – focos principais do ensino
convencional – vão perdendo a relevância, já que essas áreas são cada
vez mais dominadas pelas máquinas. Para poder encarar os desafios e se
adaptar às mudanças, cabe aos seres humanos potencializar o que há de
mais humano em si mesmos: criatividade, autoconhecimento, autonomia,
pensamento crítico, capacidade de resolver problemas, de ter iniciativa,
flexibilidade, empatia, entre outras coisas mais.
Apesar dessas constatações, as instituições de ensino de hoje –
sejam elas públicas ou particulares – mais se assemelham a uma linha de
montagem de estudantes para obterem boas notas no boletim ou em exames
de ingresso nas faculdades. Sendo assim, sobra pouco espaço ou quase
nenhum tempo para se dedicar a desenvolver qualquer uma dessas
“competências”, como estão sendo chamados as habilidades pessoais que
prometem fazer (e já fazem) uma diferença positiva na vida das pessoas.
Mas como ensinar isso na escola? Essa é a resposta que o mundo
inteiro busca, mesmo os países com ótimos resultados no Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Esse sistema que
compara o desempenho escolar de alunos de mais de 80 nacionalidades se
resume a provas de matemática, ciências e leitura. Uma análise bem
restrita diante da proposta de “educação integral”, que trabalha, além
do aspecto intelectual, o social, o emocional, o cultural e o físico ao
mesmo tempo. E que aos poucos vai se tornando um consenso mundial da
direção a ser seguida pelas escolas para entrarem, de fato, no século
21. (Conheça uma escola pública e uma particular inovadoras nos textos ao final da reportagem)
Dar a mão à palmatória
Para o educador e pedagogo espanhol Antoni Zabala, referência mundial na área (
leia entrevista aqui),
o conteúdo do que é ensinado deve mudar radicalmente. “Seguimos atados a
conteúdos históricos e outros pré-históricos. As matérias tradicionais
morreram ou deveriam morrer, necessitamos de outros conteúdos de
aprendizagem.” A afirmação, em geral, faz muita gente arregalar os
olhos. Diminuir o volume teórico das aulas parece estar atrelado à queda
da qualidade de ensino. Mas Zabala não ameniza seu parecer e sugere uma
reflexão: “Você gostaria de ir a um dentista que usa métodos de 40 anos
atrás? Temos ou não temos que mudar? Temos que continuar ensinando o
mesmo da mesma maneira?”
Ele conta que, para melhorar o que escreve, não sabe usar a
morfossintaxe que aprendeu na escola, embora tirasse sempre boas notas
no tema. Isso porque a matéria foi ensinada para que ele pudesse fazer
análise sintática das orações, mas não para melhorar um texto. “O
objetivo do estudo como é hoje é errado: se ensina matemática, português
e química, mas não para a vida. Embora para entender a vida seja
necessário aprender matemática, português e química.”
Um dos responsáveis pela transformação curricular do ensino espanhol
no período pós-Franco – reforma que ainda não conseguiu sair de fato do
papel –, Zabala enfatiza que o mundo hoje exige mais capacidades do que
conhecimentos teóricos isolados da realidade das pessoas. Assim como não
é possível ser competente ou capaz sem conhecimento, este não serve de
nada, por si só, se não puder ser usado para a compreensão e intervenção
nos problemas da vida real, seja nos âmbitos pessoal, interpessoal,
social ou profissional.
“Se perguntar aos empresários do mundo inteiro que características
querem nos seus funcionários, a resposta é que fundamentalmente precisam
de pessoas que saibam aprender a aprender, porque vamos ter sempre
mudanças. Pessoas que saibam resolver problemas, trabalhar em equipe,
que sejam solidárias e generosas”, argumenta. Como se aprende essas
coisas? Na visão dele, só na prática é possível. “A dinâmica das aulas
deve levar os alunos a fazer coisas dentro de sua individualidade”,
afirma.
Zabala aponta que, com os avanços científicos em neurociência e
comportamento dos últimos anos sobre como as pessoas aprendem, é
possível deduzir novas formas de ensinar. Construtivismo é o nome que se
dá aos estudos que procuram entender como se estrutura o conhecimento
e, como o nome já sugere, segue a lógica de uma construção. “O
construtivismo diz que devemos partir do conhecimento prévio dos alunos.
Quando uma pessoa quer construir uma casa, a fundação não é a mesma
para um terreno rochoso e para um arenoso. Portanto, devemos construir
de acordo com o terreno”, exemplifica.
Dessa lógica da construção também surge a ideia de trabalhar as aulas
por meio de projetos multidisciplinares. A proposta é permitir que os
alunos escolham trabalhos práticos para desenvolver sobre temas de seu
interesse. Por meio deles, os professores passarão os conceitos teóricos
antes transmitidos de forma desconexa e teórica em intermináveis e
maçantes aulas expositivas. Algo muito próximo de ir ao dentista sem
medo e sem dor, para manter a comparação feita por Zabala.
Para se chegar a um novo sistema de ensino mais contemporâneo, é
preciso também muita desconstrução de velhos conceitos, como carteiras
enfileiradas, estudantes sentados e calados por horas, sinais sonoros
marcando início e fim de atividades, séries definidas por idade, lições
padronizadas por séries e relações hierarquizadas e autoritárias. A
diversidade nos grupos de projetos – reunindo alunos de diferentes
idades e diferentes níveis de aprendizado – vem substituir as
tradicionais turmas de classe e costuma promover uma troca maior e um
desenvolvimento mais personalizado de cada um.
“Não existe mais aluno de primeiro, segundo ou terceiro ano – existem
João, Pedro, Maria, Teresa. Existem alunos, mas não grupos de alunos.
Cada um é diferente, tem suas habilidades, talentos, valores, família,
experiência distintas”, afirma Zabala. Para ele, o problema da forma de
ensinar não está tanto na introdução das tecnologias, que são um meio
eficaz de oferecer a cada um os conhecimentos mais apropriados a suas
características, adequados ao seu ritmo e estilo. A questão maior é a
resistência de boa parte do professorado.
Nessa mudança profunda de estímulo pedagógico, baseado em práticas e
vivências, os alunos se tornam protagonistas do aprendizado, precisam
ser ouvidos, podendo e devendo ser cocriadores das soluções. Ao
professor já não cabe mais transmitir conhecimento; ele assume um papel
de mentor, que interage, motiva, direciona e apoia o processo de
descoberta dos estudantes.
“Não estamos pedindo ao educador nada diferente do que todas as
profissões tiveram que fazer, que foi se reinventar a partir do
aparecimento das tecnologias, das novas demandas, dos novos cenários”,
argumenta Anna Penido. A diretora do Instituto Inspirare considera que o
professor ainda é insubstituível, e provavelmente continuará a ser. Mas
apenas se resgatado o papel do educador como alguém que pode
transformar a vida do aluno é que a profissão ganhará valorização
social. A recompensa financeira deve vir acompanhada.
Ponto de partida
O Brasil já iniciou de alguma forma o processo de inovação do ensino
por meio do currículo, a grande bússola capaz de puxar a mudança. Ele
determina os alunos que o país quer formar e, a partir dele, se definem
infraestrutura de escola, formação de professor e práticas pedagógicas
para se construir uma escola diferente. Mas, assim como na Espanha,
ainda é preciso sair do papel.
Anna explica que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) tem um
capítulo introdutório muito contemporâneo, apontando que a orientação
para a educação básica é a promoção do desenvolvimento integral,
trabalhando a multidimensionalidade do estudante por meio de
competências gerais que são realmente o estado da arte no que hoje é a
visão mundial desse assunto.
Mas as instituições escolares ainda têm dificuldade de trazer as
competências gerais para o trabalho das disciplinas convencionais de
português, matemática, ciências humanas, da natureza, etc. “Não sabemos
ainda como trabalhar empatia, criatividade, cultura digital como algo
basilar. Porque o que fizemos até agora nesse sentido foi como algo
complementar. Então, ainda temos essa dificuldade de propor o novo.”
A BNCC do ensino infantil e fundamental já está homologada e sendo
trabalhada para aplicação nas escolas. Mas a BNCC do ensino médio, que
ainda não foi aprovada nem homologada, propõe mudanças para além daquele
capítulo introdutório e ainda gera polêmica. “Imposta por meio de uma
medida provisória, a polêmica da BNCC às vezes está mais no atropelo do
processo do que no conteúdo. Mas pior seria se o país não estivesse
discutindo essas questões. Temos que falar sobre isso”, afirma.
Não se justifica mais querer encontrar razões para não fazer essa
transição, por mais drástica que pareça, porque o processo educacional
já não pode mais ficar parado no tempo. As limitações das avaliações, da
burocracia e da falta de recursos são dificultadores, mas não podem ser
impeditivos. “As taxas crescentes de depressão e até de suicídios entre
crianças e jovens, no Brasil e no mundo, são um fenômeno da inadequação
e inadaptação à sociedade como um todo, e à escola em particular”,
afirma Anna. Para ela, os níveis de angústia, ansiedade e infelicidade
entre os estudantes estão levando as famílias – que na maior parte
pensam com a cabeça do século 20 – a refletir se querem isso mesmo para
seus filhos. Quando pais se unem a educadores e governos, a
transformação do sistema de ensino se torna ainda mais consistente e
possível.
[Fonte: Revista Planeta]